O corpo, ao longo dos séculos, sempre foi tema de preceitos, tabus, ritualizações e controle social inspirado no modelo da cultura ocidental. O corpo feminino, quando considerado aceito em suas manifestações, inspirou poesias, pinturas, músicas, esculturas, além de outras práticas artísticas. A valorização era estética e sensual, o corpo para consumo e controle. Em relação ao corpo negro, a submissão à lógica hierarquizadora do sistema escravista criou um campo de significado negativo que persistiria através da mentalidade racista. Se predominava, antes, uma exaltação ao corpo feminino, a intersecção entre gênero e raça passou a provocar novas representações e necessidades de controle. De modo paralelo ao mundo artístico patriarcal, também foram construídos discursos que visavam a controlar o corpo feminino negro, “particularmente no que dizia respeito ao campo de sua gestualidade, ou mais precisamente, da sua linguagem corporal. O corpo feminino deveria ser contido naquilo que poderia significar para a sociedade.” (LEAL; OLIVEIRA, 2009, p. 137). Por isso, quando associado a práticas culturais negras, esse corpo chamou a atenção das autoridades disciplinadoras. A repressão a estas mulheres acabou ficando registrado na história e, como uma mensagem de náufrago, nos chega como instrumento de esperanças para as lutas contemporâneas.
Vicente Salles foi um dos primeiros pesquisadores a investigar essa temática em relação à Amazônia. Ele notou que, sempre que o corpo negro feminino alcançava algum empoderamento comunitário ou individual, recebia duras repressões das autoridades. Era o desejo de controlar, eliminar ou folclorizar práticas culturais negras que limitavam o esforço de organização sociocultural de mulheres. Em 1969, Salles destacou a figura de Francisca Lima do Espírito Santo, tia Pê, como a pessoa de maior destaque para a prática do carimbó na cidade de Vigia/PA (SALLES; SALLES, 1969). Antes, Salles havia nos apresentado a ação das mulheres Taieras do Umarizal. Mulheres negras, lavadeiras, que conciliavam o canto com o trabalho. Além delas, outras organizações de mulheres, associadas ao mundo cultural, foram apresentadas pelo pesquisador (SALLES, 2004). Em relação a ação de mulheres negras do interior, Maria Felipa, a liderança quilombola mais destacada do Baixo Tocantins, foi redescoberta através da pesquisa de Benedita Celeste (PINTO, 2010). Felipa, guardiã de saberes tradicionais, conduziu o quilombo do Mola por muitos anos no contexto da luta contra a escravidão. Em 1997, entre os vários resultados da rede GEPEM/REDOR, a publicação do livro Desafios de identidade trouxe à tona a história da mais antiga mulher capoeira do Brasil, a cafuza Jerônima, presa no Pará em 1876 (MIRANDA; SANTOS, 1997). O conhecimento sobre sua história ajudou na mobilização de mulheres, como a capoeirista Sílvia Pé de Anjo (in memoriam), visando a organização do Movimento Capoeira Mulher. O Encontro foi tão bem sucedido que já dura mais de vinte anos. Outros exemplos poderiam ser citados aqui, mas o objetivo é apenas ilustrar as possibilidades que podem vir à tona quando o interesse de pesquisa se volta para referenciais não convencionais associados ao patriarcalismo. Essa é a base da proposta para esse dossiê temático apresentado à Revista Gênero na Amazônia.
O dossiê Mulheres, cultura e identidade negra articula temas de imenso valor social e histórico para refletir as relações de gênero e perspectivas de ação feminina em diferentes situações culturais, levando em consideração as análises teórico-metodológicas a partir do conceito de feminismo interseccional (AKOTIRENE, 2019). Com base nessas questões, é possível pensar como a atuação, a trajetória e a história dessas mulheres estão se relacionando e interferindo nas suas experiências de vida diante das múltiplas opressões de gênero que elas vivenciaram ou vivenciam. A estrutura social, na qual essas mulheres atuam, se aglutina para além das relações de gênero, pois integram questões como racismo, sexualidade e sexismo. As relações sociais também podem ser compreendidas como campo de ação e articulação entre os diferentes sujeitos. É no meio social, através de trajetórias individuais ou coletivas, que mulheres vivenciam tensões e sociabilidades de gênero relacionadas com a experiência da diáspora africana para o Brasil. Desse modo, este dossiê se divide em seis seções que visam alcançar a pluralidade das experiências femininas relacionadas a identidade negra:
1. Corpos femininos e cultura negra: luta política, empoderamentos e resistências.
2. Protagonismos femininos: memórias e biografias de mulheres negras em comunidades.
3. Mulheres negras em movimento: educação, quilombos e aldeias.
4. Pluralidades identitárias: mulheres negras, LGBTQI+ e militâncias feministas.
5. O feminino na cultura popular e nas representações folclóricas.
6. Literatura, música e outras linguagens artísticas: expressões sobre as relações de gênero.
Nos interessam abordagens que revelem mulheres, ou coletividades femininas, como protagonistas de práticas culturais negras de alcance coletivo. A história de mulheres relacionadas a saberes afro brasileiros, como capoeira, carimbó, samba do cacete, samba de roda etc. Estes saberes podem nos ensinar muito sobre outras lógicas de empoderamento feminino, sociabilidades e tensões de gênero. Também cabem nesta chamada: a ação de lideranças femininas, através da afirmação de identidades negras; personalidades significativas de organização das comunidades quilombolas, cujos referenciais de destaque ou ancestralidade são femininos; mulheres com saberes de “dom” predominantemente femininos, como as benzedeiras e parteiras, são bem vindos para a composição deste dossiê. Que novas leituras sobre a ação coletiva de mulheres e o significado do corpo negro feminino possam nos ajudar a repensar a história e a cultura amazônica.
Referências:
ALVARES, Maria Luzia Miranda; SANTOS, Eunice Ferreira dos (org.). Desafios de identidade: espaço-tempo de mulher. Belém: Editora Cejup: GEPEM/REDOR, 1997.
AKOTIRENE, Carla. Interseccionalidade. São Paulo: Sueli Carneiro; Pólen, 2019.
LEAL; OLIVEIRA. Capoeira, identidade e gênero. EDUFBA: Salvador, 2009, p. 137.
PINTO, Benedita Celeste de Moraes. Filhas das Matas: práticas e saberes de mulheres quilombolas na Amazônia Tocantina. Belém: Editora Açaí, 2010.
SALLES, V.; SALLES, M. I. Carimbó: trabalho e lazer do caboclo. Revista Brasileira de Folclore. Rio de Janeiro: CDFB/MEC, v. 9, n.25, set./dez. 1969.
SALLES, Vicente. o negro na formação da sociedade paraense. Belém: Editora Paka-Tatu, 2003.
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