Denise Machado
Cardoso[i]
Em
Belém, o trajeto definido para a Caminhada das Mulheres contra um candidato à
presidência da República (também conhecido como Inominável, além de várias
definições que fazem trocadilhos com seu nome) foi uma feliz e surpreendente escolha.
Primeiro porque quebrou uma tradição de fazermos manifestações de rua sempre na
mesmo trecho das avenidas Nazaré e Presidente Vargas, incluindo o Ver-o-peso.
Salvo engano, descendo ou subindo, estas são os lugares por onde passam as
passeatas e carreatas (além de desfiles diversos e procissões).
Virou
lugar comum caminhar por estas ruas como modo de evidenciar pautas dos
movimentos sociais. Mostrar ao público o que incomoda e exigir das “otoridades”
mais ações em prol de diversos setores sociais passa sempre pelas manifestações
nas avenidas, praças e mediações nos bairros de São Braz e de Nazaré. A
Escadinha do Ver-o-Peso e a praça da República são de certa maneira “palco”
para as expressões de toda ordem, principalmente aquelas que dizem respeito aos
movimentos sociais. Contudo, no dia 29 de setembro de 2018, houve uma
alteração, onde a ordem esperada e já conhecida, deu lugar à subversão do
estabelecido pelo costumeiro.
Além
da proposta da subversão das usuais práticas políticas, sociais e culturais,
nas quais o “lugar das mulheres é no espaço doméstico”, houve inovações e
surpresas no fazer a “Caminhada das Mulheres”. E de imediato surpreendeu a
todos e todas presentes na praça do Mercado de São Braz (localizada no bairro
do mesmo nome), a ausência de informações sobre o trajeto que seria seguido. A
justificativa para essa possível indefinição era a questão da segurança, pois
havia o temor de confronto com seguidores e simpatizantes do candidato
“Inominável”.
Já
era quase 18h quando o carro-som seguiu da Avenida José Bonifácio em direção à
Avenida Duque de Caxias. Pensou-se que as pessoas iriam dobrar na Avenida
Governador José Malcher, mas para surpresa de todos, seguimos na própria
“Duque” em direção ao desconhecido destino. Fomos na fé! Como se diz
popularmente.
O
trajeto era o que menos importava, pois o que nos movia era a intenção de
protestar e manifestar nosso repúdio a um candidato à presidência da República
com ideias e propostas fascistas. A mobilização tinha um motivo em comum,
embora fossemos tão diferentes em termos de gênero, cor, religião, classe
social e outros marcadores sociais. Éramos muitas mulheres, e havia muitos
homens também. Erámos jovens e velhos, pessoas em sua maioria adultas e algumas
crianças caminhando por estas ruas de Belém.
Havia
um sentimento de alegria em todos nós devido à solidariedade nesse ato de
protesto. Havia, também, a satisfação em reencontrarmos pessoas que há muito
não víamos. Muitas que sequer tínhamos notícias, outras que nem lembrávamos,
aquelas com quem convivemos no dia-a-dia. Era bom sentir que muitos estão do
nosso lado e não estamos sozinhas.
Homens
vieram nos apoiar e protestar juntos conosco. A caminhada se tornou algo para
além das mulheres, embora fosse o momento de protagonismo nosso. A organização,
a definição do trajeto, as palavras de ordem puxadas a todo instante, as falas
que vinham do carro-som, tudo era protagonizado pelas mulheres.
O
que havia se iniciado nas mídias sociais ganhava as ruas. E se já fora
emocionante o 11 de setembro como o dia de maior adesão, postagens, e
movimentação na página do Facebook, agora era a hora de deixar o espaço público
virtual e vir para o espaço público das ruas. E posso afirmar que foi algo
marcado por emoções diversas, com sentimentos de apoio e solidariedade, com
intenções de mudanças e protestos em prol da superação de desigualdades
sociais, contra o racimo, contra o machismo, contra a homofobia e lesbofobia,
contra a discriminação contra uma série de coisas que atinge a maioria numérica
da população brasileira.
A
beleza do ato estava nas manifestações expressas nas faixas, nos adereços de
cabelo e nos cartazes. Principalmente, estava belo ver as várias estampas de
camisas cuja predominância era o #ELENAO. As camisas pintadas em diferentes
técnicas foram predominantes e marcaram uma identidade visual inovadora.
O
movimento foi para além das bandeiras partidárias e desde o princípio se buscou
justamente essa separação desta manifestação com determinados grupos sociais. A
recomendação para não levarmos bandeiras deste ou daquele partido se deu por
medida de segurança e para não atrelar a manifestação à apenas este ou aquele.
Havia
um temor de que houvesse confrontação e violência por parte dos seguidores do referido
candidato, pois além de ser uma prática comum dessas pessoas, era algo já
anunciado e praticado. A exemplo disso, tem-se o ataque contra a integridade
física de uma das organizadoras do perfil no Facebook. O temor de algo
semelhante pairava entre nós.
Para
evitar que estas ameaças se concretizassem foram tomadas algumas medidas
preventivas junto à Defensoria Pública do Estado do Pará. Muitas pessoas com
crachás desta instituição circulavam entre nós e nos acompanharam ao longo do
percurso. Tratava-se de uma ação preventiva e para nos resguardar em nossos
direitos enquanto cidadãos e cidadãs.
Ao
longo da caminhada fomos nos surpreendendo com a quantidade de pessoas que se
juntavam neste protesto uníssono contra a ameaça fascista. E à medida que
caminhávamos e percebíamos esta quantidade grande de pessoas (estima-se que em
torno de vinte mil) a caminhada se tornava mais estimulante.
O
sentimento de alegria emergia a cada encontro com alguém conhecido, algum
colega de faculdade (estudantes e professores/as) e colegas das redes sociais.
Era bom ver gente conhecida do nosso lado e saber que não estamos isoladas
nesta marcha.
Muitos
professores e professoras de universidades, vários conhecidos de diferentes
grupos, e uma porção imensa de desconhecidos com quem interagíamos a todo
instante. E tudo seguindo com tranquilidade.
Uma
outra surpresa boa foi ter muita gente diferente, manifestando-se contra o
avanço da ameaça de eleição do candidato já citado. O que era comum entre nós,
além do objetivo de estar ali, era a consciência de que nunca se tinha vivenciado
algo parecido em Belém. A caminhada das mulheres nesta tarde quase noite
surpreendeu pela diversidade de pessoas e pela maneira de protesto, além do
novo percurso.
O
que essa nova alternativa de trajeto contribuiu no êxito do protesto? Avalio
que muitas pessoas que caminhavam conosco sequer conheciam aquelas ruas (ou
raramente transitam por lá); moradoras e moradores foram surpreendidos por uma
caminhada inédita em seus bairros, e de modo positivo porque não houve ameaças
aos patrimônios e estávamos caminhando sem atropelos;
Dentre
as coisas que mais destaco é o fato de que mudando o trajeto inovou-se, pois para
o povo dos bairros de Nazaré, do Centro, e de São Braz, seria apenas mais uma
manifestação. Mais uma passeata dentre tantas outras que já ocorreram e que,
para estas pessoas, causam transtorno no trânsito e atrapalham a rotina de quem
mora neste lugar.
Ao
ir por outros caminhos, com outras pautas e com pessoas de diferentes grupos
sociais, a caminhada surpreendeu ao incluir bairros não centrais, alguns
marginalizados ou discriminados. Deixou-se o bairro de Nazaré (considerado como
um bairro “nobre” em termos imobiliários e culturais) para ir ao bairro da
Pedreira (conhecido como o “Bairro do Samba e do Amor”). Seguimos para o bairro
popular e evitamos o bairro de elite. E isso eu considerei maravilhoso. A elite
nos aguardava, possivelmente com má vontade, e fomos para um lugar de pessoas
de camadas médias urbanas e pobres.
O
“bairro do samba e do amor” assistiu à passagem de milhares de pessoas que
portavam em si os protestos contra um candidato com propostas tão vis. Passamos
com alegria, com cores não se referem aos partidos políticos, embora
indicássemos nossas preferências nas bandeiras ou bótons.
Fico
preocupada com estas coisas suprapartidárias para não ser confundidas com
apartidárias. Então, chamo a atenção pelo fato de que sendo uma mobilização
contra o Fascismo, ela por si já é algo contra o avanço da Extrema Direita.
Portanto, a opção já foi deflagrada. O momento não era para defender um
candidato ou candidata de partido político, apenas. Havia pessoas que concorrem
a cargos políticos diversos, mas o que importava naquele momento era
manifestar-se contra esta possível vitória de um candidato com proposta de viés
Fascista.
As
cores indicadas para utilizarmos foi a branca e lilás. Além de ser
significativa para o movimento feminista era também uma cor não utilizada pelos
partidos políticos. Havia, ainda, a utilização de cores do arco-íris, símbolo
do movimento LGBTI. Era algo diferente em termos do uso das cores. E esse foi
mais um diferencial nesta caminhada.
Fechamos
ruas para evitar o furo por motociclistas. Lado a lado bloqueamos o avanço de
quem mesmo diante da manifestação teimava em avançar por entre as pessoas.
Esses foram casos raros, isolados, e que nos deram a oportunidade de mais um
momento de intenso protesto. Palavras de ordem como: “ele não” eram repetidas
vezes gritadas em coro.
Muitas
fotos, muitas “selfs”, muitas postagens foram feitas ao longo da caminhada.
Muitos sorrisos, muito cansaço e a vontade de seguir em frente, juntos e juntas
nessa noite de protesto. Ao chegar a Aldeia Cabana houve a dispersão. O fim não
teve a programação artística prevista, mas poucos se afastaram do local.
Sentamos
no chão das calçadas da Avenida Pedro Miranda, nas calçadas do posto de
gasolina desta avenida (com a Travessa Lomas Valentina) e nos bares e
lanchonete próximos dali. Afinal, este bairro é o do samba e do amor! Bairro de
festas, de blocos de carnaval, e da “Aldeia Cabana” o espaço construído pelo
governo do Partido dos Trabalhadores, quando Edmilson Rodrigues era prefeito de
Belém e ainda filiado ao PT.
A
Aldeia Cabana era uma referência tanto ao movimento popular da Cabanagem quanto
uma alusão aos povos indígenas. Portanto, um nome com referência às camadas
populares e não ao que usualmente é feito quando se nomeiam as praças,
monumentos e logradouros com nomes de pessoas da elite local, e até mesmo,
internacional. Este lugar foi desprezado por lideranças políticas que estão na
prefeitura e no governo do Estado. É sintomático que mesmo no carnaval este
espaço tenha sido preterido por outro menos adequado.
Nesta
caminhada buscou-se, segundo minha leitura, a retomada simbólica da Cabanagem.
Ao seguirmos para o bairro da Pedreira, seguiu-se a opção pelos bairros e
lugares populares, do “samba e do amor”, deixando de lado os caminhos que nos
levam para a mesmice e para os lugares da elite econômica e política de Belém.
Foi
uma caminhada de mulheres e o protagonismo delas (ou melhor dizendo, nosso
protagonismo) arrebatou a todos que puderam assistir ou participar. Foi um
grito contra a opressão e ameaças evidentes do que nos apresenta um governo
fascista. Este possível e ameaçador retrocesso foi um dos motivos para tamanha
adesão.
Perder
o que foi conquistado à duras penas foi e está sendo um grande fator de
mobilização das mulheres. E por conta disso, era comum ouvir manifestações de
pessoas acerca das conquistas sociais como o voto feminino, as ações
afirmativas nas universidades, as políticas voltadas para as pessoas
empobrecidas, e vários outros temas que unem os movimentos sociais. A ameaça
contra a democracia, a volta de governos ditatoriais, a perseguição e violência
contra pessoas negras, homossexuais e lésbicas, contra professoras e
professores, artistas e intelectuais, a violência sobre possíveis opositores ao
governo, formam o conjunto de motivos para aderir e apoiar a caminhada. Com isso,
vê-se que ela tem uma pauta feminista embora não se encerre nela.
O
feminismo presente neste ato é inegável, mas para além dele existe o combate às
propostas não democráticas e aos riscos de retrocesso das conquistas sociais.
Por conta dessa realidade ameaçadora, as mulheres e homens foram às ruas num
protesto sem precedentes em Belém, de tal modo que se pode afirmar que se trata
de fato ímpar, único, portanto, em nossa História.
Mesmo
que se tente negar a sua relevância, trata-se de algo novo e que traz marcas
indeléveis sobre nossas vidas. Para além das eleições presidenciais deste ano,
o ato está atrelado a algo mais abrangente e que diz respeito às mulheres do
Brasil, e de outros países. Contudo, eu me reporto apenas às minhas impressões
deste dia, desta tarde, e desta noite inesquecível.
Viver
esse momento junto à minha filha, amigos e amigas, colegas e pessoas
desconhecidas foi um alento e uma esperança renovada. Estudar sobre o movimento
feminista e sobre as relações sociais de gênero não é suficiente diante da
possibilidade de inserção na luta pela igualdade de gênero. Combater,
efetivamente e para além das urnas eleitorais, a proposta que se apresenta por
um candidato com perfil de extrema direita, dá-nos alento e torna a vida menos
triste e desesperançosa.
Amanhã
será outro dia, mas este dia de primavera em Belém do Pará (embora ela não seja
tão evidente em nossa região) ficará para sempre na memória de quem dele
participou. Estou exausta, cansada fisicamente, e feliz com a possibilidade de
ter chegado ao fim desta feliz caminhada.
Após
um almoço regado com açaí e camarão, resta o repouso de quem está plenamente
convicta de que as mulheres têm uma força “tremenda”. E mesmo diante das
conjunturas, atuais e pretéritas, nas quais há o predomínio do Patriarcado,
sabemos que a nossa força existe, que algo em nós está oculto e que nos faz
sermos fortes, há algo que não nos vence efetivamente, posto que temos
adormecida a potencialidade de sermos plenamente o que somos.
Quando
viemos juntas às ruas e trazemos à tona essa força, não há o que nos segure.
Nem a violência, seja ela física ou simbólica, nem as práticas misóginas apagam
efetivamente nossas vontades.
Estou
feliz com o que vivenciamos ontem, estou feliz porque não estivemos sós, estou
feliz porque nossa pauta não é das mulheres ela é uma pauta de todos. Ser
feminista é ser a favor da humanidade, embora algumas pessoas pensem ser uma
reinvindicação de coisas restritas às mulheres e contra os homens.
Estou
feliz e realizada com o que vivi e feliz com o porvir.
Avante!
[i]
Assessora
da ADIS/UFPA - Assessoria da Diversidade e Inclusão Social. Coordenadora do
VISAGEM/ Grupo de Estudos sobre Antropologia Visual e da Imagem. Coordenadora
do GEPI - Grupo de Estudos sobre Populações Indígenas. Pesquisadora do LAANF -
Laboratório de Antropologia Arthur Napoleão Figueiredo.