Comemora-se
hoje o Dia Internacional da Declaração dos Direitos Humanos. Os altos níveis de
violência mundiais perpetrados contra a pessoa revelam a baixa conscientização
sobre o que representou a assinatura dessa Carta pelas Nações Unidas e que tem
pautado suas campanhas na luta contra a discriminação e os processos de
violência contra os humanos.
Os
trinta artigos do documento descrevem os direitos básicos garantidores de uma vida
digna para todos os indivíduos (liberdade, educação, saúde, cultura,
informação, alimentação e moradia adequadas, respeito, não-discriminação, entre
outros).
Secularmente,
há uma longa história de debates entre filósofos e juristas acerca da concepção
dos direitos humanos, considerando o início dessas discussões a área da
religião, com o cristianismo medieval defendendo a igualdade de todos os
homens, admitindo a teoria do direito natural. Mas, se reconhecem a
centralidade dos indivíduos numa ordem social e jurídica justa, sobrepõem a
prevalência da lei divina sobre o direito laico e, a partir dai, há uma outra
vertente de discussões que não cabe avaliar neste momento.
Com
a teoria dos direitos naturais ou jus naturalismo (século XVII) que fundamenta
o contratualismo de onde desponta a doutrina liberal, o direito à vida, à
liberdade, à propriedade, à segurança e à resistência contra a opressão serão
considerados os direitos naturais do indivíduo. E constam do Art. 1 da
Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, assinada em 26 de agosto de
1789, na Revolução Francesa. A Declaração de Independência da Revolução Norte
Americana, de 4 de julho de 1776, portanto, anterior à francesa, compõe com
esta as primeiras manifestações concretas de declarações de direitos, na era
moderna. São fatos históricos que determinam que os direitos humanos se
associem, primeiramente, aos direitos individuais e as liberdades públicas,
contribuindo para os limites à competência do poder público.
Os
Direitos Humanos vão adquirir estatuto próprio durante o Século XX, a partir de
1945, com a declaração firmada na Carta de fundação das Nações Unidas (24 de
outubro de 1945), quando as experiências de guerras mundiais demonstram a
necessidade da consolidação desses direitos através da criação de um sistema
internacional de proteção, para estabelecer e manter a paz no mundo.
A
Declaração Universal dos Direitos do Homem concretizada na Carta das Nações
Unidas, adotada e proclamada pela resolução 217 A (III) da Assembleia Geral da
ONU em 10 de dezembro de 1948, procura “reafirmar a fé nos direitos
fundamentais dos homens, na dignidade e no valor da pessoa humana, na igualdade
de direitos de homens e mulheres e das nações grandes e pequenas”(cf. Chiarotti
& Matus, p. 8). No postulado básico que declara os direitos iguais pela
condição de pessoa, remete a uma nova perspectiva de igualdade entre os seres
humanos visto que considera sua diversidade e diferenças.
A
formulação dessa declaração como direitos humanos (não como “Direitos do
Homem”) vem da presença de Eleanor Roosevelt na Comissão de Direitos Humanos da
ONU, ao discutir a redação da Carta. Ela propõe que a palavra homem seja
substituía pelo termo humano ou pessoa, iniciando-se um processo que vem sendo
defendido historicamente pelas mulheres e feministas, de rupturas ao sujeito
genérico e universal, passando assim a ser incorporada à Declaração Universal.
Os
direitos civis e políticos constantes da Carta centram-se “na proteção à
liberdade, à segurança e à integridade física e moral da pessoa, além da
garantia ao seu direito de participação na vida pública” (p.9). São chamados de
Direitos Humanos de Primeira Geração.
Na
segunda metade do Século XX, a concepção e os conteúdos dos direitos humanos
sofrem mudanças importantes com “a noção de direitos econômicos, sociais e
culturais, referidos à existência de condições de vida e de acesso aos bens
materiais e culturais, de acordo com a dignidade inerente a cada ser humano”
(idem). Este novo conjunto de direitos nomeia-se Direitos Humanos de Segunda
Geração.
Os
de Terceira Geração emergem na Carta como produto das lutas dos diversos
movimentos sociais das últimas décadas, constando os “direitos a respeito das
ofensas à dignidade humana, tão graves como a tortura e a discriminação racial.
Outros direitos estão orientados a proteger certas categorias de pessoas:
mulheres, crianças, refugiados, negros entre outros. Também existem os chamados
“direitos coletivos”, entre os quais podemos citar o direito ao
desenvolvimento, o direito ao meio ambiente e o direito à paz”(p. 10). Entre os
três há diferenças visto que este último tem como titulares grupos de pessoas.
Os
Direitos Humanos têm contribuído na concepção de sujeito, recuperando as
dimensões “do corpo, a sexualidade, a linguagem, a subjetividade, negadas tanto
na concepção vigente de sujeito como também nas práticas cotidianas”(p. 11). A
valorização dessa nova dimensão proporciona a construção de um novo imaginário
permitindo repensar novas perspectivas das formas de vida social.
As
mulheres contribuíram ao conceito de direitos humanos a partir de duas
dimensões imbricadas: a contribuição teórico-acadêmica do feminismo
revalorizando a diferença sexual e a formulação da perspectiva de gênero; e as
contribuições teórico-práticas das experiências diferenciadas dos movimentos de
mulheres em nível mundial e latino-americano.
As
novas formulações dos movimentos feministas fazendo emergir a organização e a
visibilidade das mulheres passa a questionar os paradigmas da modernidade. A
ordem das relações hierárquicas e dos valores são questionados deixando à
mostra o processo de subordinação que submete a mulher. “Ao revelar a
construção histórica da diferença sexual instituída pelas sociedades, denuncia
a edificação de uma ordem natural que perpetua um sistema de relações
fundamentado na hegemonia de um sexo sobre outro”( p. 12).
Há
um tempo de denúncias a essa subordinação histórica que emerge a partir do
conceito de patriarcado, e outro tempo de identificação das identidades
construídas culturalmente das diferenças de sexo. De ferramenta explicativa, o
patriarcado torna-se uma categoria política. Quando as investigações sobre a
condição da mulher alcança uma dimensão expressiva nasce o conceito de gênero.
O
resultado das ações concretas das mulheres vai demonstrar que este gênero
sempre esteve excluído de seus direitos sociais e políticos. Da linguagem que
estabelece a hierarquia genérica – homens - à questão do acesso à saúde, aos
direitos reprodutivos, à sexualidade prazerosa, as mulheres passam a perceber
que estão enquadradas num nível de cidadania de segunda categoria. É-lhes
negado o direito ao corpo, o direito à escola, o direito à terra, o direito de
decidir sobre uma gravidez indesejada, o direito previdenciário (enquanto
representante de certas categorias de trabalhadoras, como as pescadoras), o
direito ao trabalho, o respeito à sua inteligência, o espaço em que circula.
Ao
investigar as práticas de violência doméstica e sexual percebe-se que toda a
noção de sujeito centra-se num processo de discriminação sobre seu gênero.
Contudo, suas formas de resistência ao processo opressor, a visibilização da
exclusão aos direitos sociais e aos meios que a discriminam, tendem a
reformular a noção de sujeito apontando para a diversidade desses sujeitos dos
Direitos Humanos. “É desta maneira que as mulheres contribuem de modo
fundamental na reformulação da noção de sujeito universal e abstrato, ao
questionar o etno e o androcentrismo que situa ao homem ocidental como
parâmetro do universal. Isto permite o reconhecimento de uma “humanidade” com
diversos rostos.”(p 17)
Por
isso, o que dizer da impunidade aos bárbaros crimes cometidos contra as
milhares de mulheres conforme denunciam as pesquisas e os dossiês sobre
violência de gênero, apesar da pressão internacional, que neste “des-governo”
brasileiro vai perdendo as garantias de tantos direitos aos quais temos lutado
para nos incluirmos nas linhas da Carta Declaratória dos Direitos Humanos?
A
luta pelos direitos humanos das mulheres & demais grupos sociais não tem
tempo de descanso. Façamos dessa luta a grande bandeira de nossas resistências.