segunda-feira, 4 de fevereiro de 2019

"Uma mulher de vida e práticas interseccionadas: uma homenagem a Marielle Franco", por Adriane Lima (GEPEM/UFPA)


O atual contexto político, tão conturbado e marcado por processos entrecruzados de opressão, nos convida a pensar fora das caixinhas. Na verdade, as conjunturas nacional e internacional estão nos obrigando a pensar estratégias de resistência e de luta interseccionalizadas, mas pensar e agir dessa forma nos exige ir além de nossa tradicional formação cultural e acadêmica, que mais têm nos ensinado a classificar, hierarquizar e dicotomizar a realidade, do que entendê-la em sua complexidade e totalidade.

Os retrocessos que estamos vivendo no Brasil e em grande parte dos países da América Latina têm, sem dúvida, uma dimensão econômica fundamental, assentada no aumento da exploração do trabalho pelo capital, concentração de renda, aprofundamento das desigualdades, da pobreza e da dependência dos países periféricos em relação às grandes potências mundiais. Porém, tudo isso, não pode ser compreendido em sua complexidade se analisamos a economia como uma dimensão separada da cultura, do gênero, do sexo, da raça e da etnia.

Urge, portanto, que superemos os abismos criados pelas dicotomias simplificadoras e pensemos o mundo a partir da interseccionalidade. Mas o que significa isso? A interseccionalidade nos provoca a aceitar o exercício de utilizar as categorias de classe, gênero, raça e outras de maneira inter-relacionada, de pensar a multiplicidade e as diferenças, o singular e o plural, o local e o global, a subjetividade e a objetividade. A interseccionalidade nos conduz a debater as questões de gênero que necessariamente afetam e são afetadas pelo econômico, social, político e cultural.

A utilização desta categoria teórica é inspirada pela pensadora feminista estadunidense Kimberle Crenshaw (1991), que teve a preocupação em entrelaçar diversas formas sociais e categorias outras que demarcam a desigualdade na mais variadas formas (cultural, etnia, classe, raça, gênero e outros). No Brasil, conseguimos perceber um pensamento e prática interseccionais na trajetória de Marielle Franco, mulher negra, lésbica, pobre, moradora de comunidades populares, trabalhadora e militante política de esquerda. A própria vida de Marielle foi o terreno onde sedimentou sua orientação interseccionalizada, pois sabia que sua luta contra a pobreza deveria ser articulada à luta contra o machismo, a misoginia, o racismo e a LGBTfobia.

Marielle ousou subverter os padrões patriarcais e racistas que historicamente calam e violentam as mulheres negras. Carregou no seu corpo opressões de toda ordem e talvez por isso mesmo tenha entendido que não há luta maior ou menor. Ela nos ensinou que as vidas de todas as mulheres importam, e sobretudo daquelas que mais têm sofrido ao longo de nossa história de colonização – negras, pobres, lésbicas, trans, indígenas, quilombolas.

Em uma sociedade tão conservadora quanto a nossa, o que mais pode incomodar aos poderosos é quando uma mulher transforma sua dor em resistência e luta. Marielle incomodou muito em vida, e continua a incomodar com seu legado emancipador. Ela nos ensinou que uma mulher trabalhadora tem poder para questionar a ordem econômica capitalista; que uma mulher negra é capaz de afrontar o racismo e os racistas; que uma trabalhadora lésbica promove fissuras no patriarcado e na heteronormatividade sempre que sua voz ecoa e seu corpo se movimenta.

Às vésperas de completar 01 ano de assassinada, Marielle Franco nos mostra e ensina que a horizontalização das lutas é uma necessidade pulsante. Não existe opressão maior ou menor, existem opressões e elas se articulam. A interseccionalidade não é uma camisa de força a monitorar o pensamento e a ação; ao contrário, é um processo de descoberta e de atenção para o mundo a nossa volta, que deve ser visto no movimento dinâmico, contraditório e nada linear da existência humana. É uma forma de romper com o universalismo e com as padronizações.

Por essa razão, o dia 14 de março, quando Marielle faria mais um aniversário, precisa ser visto como uma data de luta, mas de luta interseccionalizada, propícia para articularmos os diversos sujeitos sociais que têm sofrido e resistido às opressões. Que mulheres e homens da classe trabalhadora, de todas as orientações sexuais, opções religiosas, raças e etnias, sob a inspiração de Marielle Franco, unam-se em sua diversidade para lutar contra os retrocessos, as desigualdades, as opressões, em favor de uma sociedade livre, justa e emancipada.

Marielle presente!

Texto no blog: https://goo.gl/jYshqU

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