Luzia Álvares
As
mulheres, por muitos séculos, desconheciam direitos fundamentais de sua própria
vida. Nessa linha de baixa informação sobre si mesmas como seres humanos aprendiam
que “cuidar dos outros” era sua verdadeira maneira de ser mulher. Não se
importavam com isso porque esse “cuidado” era vertido para a conjugação do
verbo amar. A sociedade apontava-as como as responsáveis pela perpetuação
dessas atitudes mesmo que para isso aprendessem a subjugação hierarquizada através
do látego que cortava suas carnes e as deformava fisicamente. Aprendiam e
internalizavam psicologicamente que seu destino era o da submissão à
organização da família – se é que a tinham – ou aos duros trabalhos para manter
um grupo familiar que dizia serem elas “parte” quando na verdade eram apenas “o
outro”, carregando, a vida inteira, a existência do “um”. Apontadas como culpadas
quando suas práticas fugiam ao padrão estabelecido socialmente para o seu
gênero sofriam acusações de divergirem da pauta tradicional, nas várias épocas,
deixando de ensinar o que as normas definiam como verdades.
Um aporte de Elizabeth Badinter (1987,
“Um é o outro”) revela-se iluminador de toda a motivação dos embustes que
aprisionaram as mulheres em cárceres, alguns dourados, outros fétidos, mas
todos sob algemas: tratava-se de “... uma dominação
política, cultural e financeira. Tendo como meio uma depreciação biológica
(...).
Os
questionamentos sobre essa versão diferenciada de que “um não é o outro”
fizeram essa autora questionar: “Será o amor materno um instinto, uma tendência
feminina inata, ou depende, em grande parte, de um comportamento social,
variável de acordo com a época e os costumes? (Badinter, 1980, “O Mito do Amor
Materno”).
As
versões sobre a diferenciação do tratamento secular nas relações sociais entre
mulheres e homens proliferaram socialmente, trazendo todo o tipo de atitudes
violentas contra elas para que a manutenção do padrão de relacionamento entre
os gêneros mantivesse a hierarquização do “um” sobre o “outro”.
Mas
havia as ousadas que interpelaram esse viver empobrecido e se interpuseram a
frente das indagações sobre o porquê de tratamento tão desumano contra elas, não
só pela desigualdade familiar e social, mas pela criação de normas
consuetudinárias que se transformavam em princípios legais para manterem o
comportamento feminino já estabelecido pelo sistema patriarcal incorporado nas
várias correntes de pensamento favorecendo o conhecimento cientifico a manter a
falácia da superioridade do “eu” masculino sobre o “outro” (feminino). A
sabedoria feminina criava argumentações que projetava ideias novas nas
vertentes dos caminhos que elas passaram a abrir em todas as frentes. E a
violação de direitos excluindo-as de partes importantes do percurso humano deu-lhes
a visão de que deveriam ir à luta e conquistar o que era seu.
E
neste longo processo de lutas conquistaram adeptos e construíram sua versão do
que representavam na construção da história humana. Quebraram as amarras ao biológico,
mostraram que a sexualidade deveria ser uma questão pessoal de opção e não de
imposição, destruíram as normas que decidiam o comportamento, a indumentária, o
nível da inteligência, as formas de ser afetivas e livres para ser o que bem
quisessem.
E
assim se escreve o percurso histórico do enfrentamento das mulheres pela
transformação radical da sociedade com a inclusão de seus direitos civis,
políticos e sociais, incorporando-se na luta mundial através do movimento
feminista, associando-se aos órgãos internacionais e aos adeptos de suas causas,
realizando conjuntamente conferências, assinando convenções para denunciar os casos cada vez maiores de práticas
de violência de gênero intentando eliminar todas as formas de discriminação
contra o seu gênero. Machismo, homofobia – anti-valores culturais ancestrais – convergiam
para práticas demonstrativas da cultura patriarcal disseminada socialmente e
que teimavam em resistir ao reconhecimento das mulheres enquanto humanas.
Em 1994, na Convenção Interamericana para Prevenir,
Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher, mais conhecida como a Convenção de Belém do Pará, a abordagem da
violência doméstica e sexual contra as
mulheres, um fenômeno que não é novo e que se arrasta há séculos – tornando-se
refrão popular o dito “briga de marido e mulher não se mete a colher” – tornou-se
um marco histórico para iniciar um novo momento da luta pela judicialização do
problema e criminalização da ação de coação e tirania praticadas contra esse
gênero. A punição aos atos de violência foi se inserindo então em resoluções,
códigos e leis, no Brasil, ganhando reforço com a Lei 11.340,
Lei Maria da Penha, sancionada em agosto de 2006, com vistas a incrementar o rigor das punições para esse tipo de
crime. Uma síntese da Lei, na Introdução do texto, compromete essa preocupação:
Cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar
contra a mulher, nos termos do art. 226 da Constituição Federal, da Convenção
sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres e da
Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a
Mulher; dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar
contra a Mulher; altera o Código de Processo Penal, o Código Penal e a Lei de
Execução Penal; e dá outras providências.
Mais recentemente, em março de 2015 foi sancionada a Lei 13.104/2015, a
Lei do Feminicidio, “classificando-o como crime hediondo e com agravantes
quando acontece em situações específicas de vulnerabilidade (gravidez, menor de
idade, na presença de filhos etc.).” (Mapa da Violência 2015- Homicídios de
Mulheres no Brasil). Não há unanimidade ainda nas definições dessa lei, sendo
criticada por diversos operadores da lei e dos movimentos sociais e de mulheres,
contudo, os esclarecimentos sobre ela na pesquisa que foi realizada por Julio
Jacobo Waiselfisz (Instituto Sangari, SP) utilizou como “ponto de partida para
a caracterização de letalidade intencional violenta por condição de sexo” (...)
e a existência de feminicidio “quando a agressão envolve violência doméstica e
familiar, ou quando evidencia menosprezo ou discriminação à condição de mulher,
caracterizando crime por razões de condição do sexo feminino. “ (idem, p. 8).
Estudos e pesquisas utilizando-se de dados das
mais variadas fontes têm escancarado as comportas motivacionais sobre a ação
violenta contra as mulheres com evidências para o tipo, a posição do agressor e
o local da ocorrência desse fenômeno. A importância do conhecimento sobre os
números de casos que comprometem a vida das mulheres e outras informações que
demonstrem a dimensão desse estado de sofrimento desse gênero em sua própria
casa com agressões do próprio parceiro se torna fundante para que seja possível
romper com a cultura desse cotidiano de violência doméstica ao instruir as
mulheres sobre sua condição de humana e de sua autonomia em viver como quiser.
A vida é nossa e o universo é o espaço de
convivência da raça humana que espera ser feliz.
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