quinta-feira, 4 de outubro de 2018

CRÔNICA FEMINISTA


Denise Machado Cardoso[i]

Em Belém, o trajeto definido para a Caminhada das Mulheres contra um candidato à presidência da República (também conhecido como Inominável, além de várias definições que fazem trocadilhos com seu nome) foi uma feliz e surpreendente escolha. Primeiro porque quebrou uma tradição de fazermos manifestações de rua sempre na mesmo trecho das avenidas Nazaré e Presidente Vargas, incluindo o Ver-o-peso. Salvo engano, descendo ou subindo, estas são os lugares por onde passam as passeatas e carreatas (além de desfiles diversos e procissões).
Virou lugar comum caminhar por estas ruas como modo de evidenciar pautas dos movimentos sociais. Mostrar ao público o que incomoda e exigir das “otoridades” mais ações em prol de diversos setores sociais passa sempre pelas manifestações nas avenidas, praças e mediações nos bairros de São Braz e de Nazaré. A Escadinha do Ver-o-Peso e a praça da República são de certa maneira “palco” para as expressões de toda ordem, principalmente aquelas que dizem respeito aos movimentos sociais. Contudo, no dia 29 de setembro de 2018, houve uma alteração, onde a ordem esperada e já conhecida, deu lugar à subversão do estabelecido pelo costumeiro.
Além da proposta da subversão das usuais práticas políticas, sociais e culturais, nas quais o “lugar das mulheres é no espaço doméstico”, houve inovações e surpresas no fazer a “Caminhada das Mulheres”. E de imediato surpreendeu a todos e todas presentes na praça do Mercado de São Braz (localizada no bairro do mesmo nome), a ausência de informações sobre o trajeto que seria seguido. A justificativa para essa possível indefinição era a questão da segurança, pois havia o temor de confronto com seguidores e simpatizantes do candidato “Inominável”.
Já era quase 18h quando o carro-som seguiu da Avenida José Bonifácio em direção à Avenida Duque de Caxias. Pensou-se que as pessoas iriam dobrar na Avenida Governador José Malcher, mas para surpresa de todos, seguimos na própria “Duque” em direção ao desconhecido destino. Fomos na fé! Como se diz popularmente.
O trajeto era o que menos importava, pois o que nos movia era a intenção de protestar e manifestar nosso repúdio a um candidato à presidência da República com ideias e propostas fascistas. A mobilização tinha um motivo em comum, embora fossemos tão diferentes em termos de gênero, cor, religião, classe social e outros marcadores sociais. Éramos muitas mulheres, e havia muitos homens também. Erámos jovens e velhos, pessoas em sua maioria adultas e algumas crianças caminhando por estas ruas de Belém.
Havia um sentimento de alegria em todos nós devido à solidariedade nesse ato de protesto. Havia, também, a satisfação em reencontrarmos pessoas que há muito não víamos. Muitas que sequer tínhamos notícias, outras que nem lembrávamos, aquelas com quem convivemos no dia-a-dia. Era bom sentir que muitos estão do nosso lado e não estamos sozinhas.
Homens vieram nos apoiar e protestar juntos conosco. A caminhada se tornou algo para além das mulheres, embora fosse o momento de protagonismo nosso. A organização, a definição do trajeto, as palavras de ordem puxadas a todo instante, as falas que vinham do carro-som, tudo era protagonizado pelas mulheres.
O que havia se iniciado nas mídias sociais ganhava as ruas. E se já fora emocionante o 11 de setembro como o dia de maior adesão, postagens, e movimentação na página do Facebook, agora era a hora de deixar o espaço público virtual e vir para o espaço público das ruas. E posso afirmar que foi algo marcado por emoções diversas, com sentimentos de apoio e solidariedade, com intenções de mudanças e protestos em prol da superação de desigualdades sociais, contra o racimo, contra o machismo, contra a homofobia e lesbofobia, contra a discriminação contra uma série de coisas que atinge a maioria numérica da população brasileira.
A beleza do ato estava nas manifestações expressas nas faixas, nos adereços de cabelo e nos cartazes. Principalmente, estava belo ver as várias estampas de camisas cuja predominância era o #ELENAO. As camisas pintadas em diferentes técnicas foram predominantes e marcaram uma identidade visual inovadora.
O movimento foi para além das bandeiras partidárias e desde o princípio se buscou justamente essa separação desta manifestação com determinados grupos sociais. A recomendação para não levarmos bandeiras deste ou daquele partido se deu por medida de segurança e para não atrelar a manifestação à apenas este ou aquele.
Havia um temor de que houvesse confrontação e violência por parte dos seguidores do referido candidato, pois além de ser uma prática comum dessas pessoas, era algo já anunciado e praticado. A exemplo disso, tem-se o ataque contra a integridade física de uma das organizadoras do perfil no Facebook. O temor de algo semelhante pairava entre nós.
Para evitar que estas ameaças se concretizassem foram tomadas algumas medidas preventivas junto à Defensoria Pública do Estado do Pará. Muitas pessoas com crachás desta instituição circulavam entre nós e nos acompanharam ao longo do percurso. Tratava-se de uma ação preventiva e para nos resguardar em nossos direitos enquanto cidadãos e cidadãs.
Ao longo da caminhada fomos nos surpreendendo com a quantidade de pessoas que se juntavam neste protesto uníssono contra a ameaça fascista. E à medida que caminhávamos e percebíamos esta quantidade grande de pessoas (estima-se que em torno de vinte mil) a caminhada se tornava mais estimulante.
O sentimento de alegria emergia a cada encontro com alguém conhecido, algum colega de faculdade (estudantes e professores/as) e colegas das redes sociais. Era bom ver gente conhecida do nosso lado e saber que não estamos isoladas nesta marcha.
Muitos professores e professoras de universidades, vários conhecidos de diferentes grupos, e uma porção imensa de desconhecidos com quem interagíamos a todo instante. E tudo seguindo com tranquilidade.
Uma outra surpresa boa foi ter muita gente diferente, manifestando-se contra o avanço da ameaça de eleição do candidato já citado. O que era comum entre nós, além do objetivo de estar ali, era a consciência de que nunca se tinha vivenciado algo parecido em Belém. A caminhada das mulheres nesta tarde quase noite surpreendeu pela diversidade de pessoas e pela maneira de protesto, além do novo percurso.
O que essa nova alternativa de trajeto contribuiu no êxito do protesto? Avalio que muitas pessoas que caminhavam conosco sequer conheciam aquelas ruas (ou raramente transitam por lá); moradoras e moradores foram surpreendidos por uma caminhada inédita em seus bairros, e de modo positivo porque não houve ameaças aos patrimônios e estávamos caminhando sem atropelos;
Dentre as coisas que mais destaco é o fato de que mudando o trajeto inovou-se, pois para o povo dos bairros de Nazaré, do Centro, e de São Braz, seria apenas mais uma manifestação. Mais uma passeata dentre tantas outras que já ocorreram e que, para estas pessoas, causam transtorno no trânsito e atrapalham a rotina de quem mora neste lugar.
Ao ir por outros caminhos, com outras pautas e com pessoas de diferentes grupos sociais, a caminhada surpreendeu ao incluir bairros não centrais, alguns marginalizados ou discriminados. Deixou-se o bairro de Nazaré (considerado como um bairro “nobre” em termos imobiliários e culturais) para ir ao bairro da Pedreira (conhecido como o “Bairro do Samba e do Amor”). Seguimos para o bairro popular e evitamos o bairro de elite. E isso eu considerei maravilhoso. A elite nos aguardava, possivelmente com má vontade, e fomos para um lugar de pessoas de camadas médias urbanas e pobres.
O “bairro do samba e do amor” assistiu à passagem de milhares de pessoas que portavam em si os protestos contra um candidato com propostas tão vis. Passamos com alegria, com cores não se referem aos partidos políticos, embora indicássemos nossas preferências nas bandeiras ou bótons.
Fico preocupada com estas coisas suprapartidárias para não ser confundidas com apartidárias. Então, chamo a atenção pelo fato de que sendo uma mobilização contra o Fascismo, ela por si já é algo contra o avanço da Extrema Direita. Portanto, a opção já foi deflagrada. O momento não era para defender um candidato ou candidata de partido político, apenas. Havia pessoas que concorrem a cargos políticos diversos, mas o que importava naquele momento era manifestar-se contra esta possível vitória de um candidato com proposta de viés Fascista.
As cores indicadas para utilizarmos foi a branca e lilás. Além de ser significativa para o movimento feminista era também uma cor não utilizada pelos partidos políticos. Havia, ainda, a utilização de cores do arco-íris, símbolo do movimento LGBTI. Era algo diferente em termos do uso das cores. E esse foi mais um diferencial nesta caminhada.
Fechamos ruas para evitar o furo por motociclistas. Lado a lado bloqueamos o avanço de quem mesmo diante da manifestação teimava em avançar por entre as pessoas. Esses foram casos raros, isolados, e que nos deram a oportunidade de mais um momento de intenso protesto. Palavras de ordem como: “ele não” eram repetidas vezes gritadas em coro.
Muitas fotos, muitas “selfs”, muitas postagens foram feitas ao longo da caminhada. Muitos sorrisos, muito cansaço e a vontade de seguir em frente, juntos e juntas nessa noite de protesto. Ao chegar a Aldeia Cabana houve a dispersão. O fim não teve a programação artística prevista, mas poucos se afastaram do local.
Sentamos no chão das calçadas da Avenida Pedro Miranda, nas calçadas do posto de gasolina desta avenida (com a Travessa Lomas Valentina) e nos bares e lanchonete próximos dali. Afinal, este bairro é o do samba e do amor! Bairro de festas, de blocos de carnaval, e da “Aldeia Cabana” o espaço construído pelo governo do Partido dos Trabalhadores, quando Edmilson Rodrigues era prefeito de Belém e ainda filiado ao PT.
A Aldeia Cabana era uma referência tanto ao movimento popular da Cabanagem quanto uma alusão aos povos indígenas. Portanto, um nome com referência às camadas populares e não ao que usualmente é feito quando se nomeiam as praças, monumentos e logradouros com nomes de pessoas da elite local, e até mesmo, internacional. Este lugar foi desprezado por lideranças políticas que estão na prefeitura e no governo do Estado. É sintomático que mesmo no carnaval este espaço tenha sido preterido por outro menos adequado.
Nesta caminhada buscou-se, segundo minha leitura, a retomada simbólica da Cabanagem. Ao seguirmos para o bairro da Pedreira, seguiu-se a opção pelos bairros e lugares populares, do “samba e do amor”, deixando de lado os caminhos que nos levam para a mesmice e para os lugares da elite econômica e política de Belém.
Foi uma caminhada de mulheres e o protagonismo delas (ou melhor dizendo, nosso protagonismo) arrebatou a todos que puderam assistir ou participar. Foi um grito contra a opressão e ameaças evidentes do que nos apresenta um governo fascista. Este possível e ameaçador retrocesso foi um dos motivos para tamanha adesão.
Perder o que foi conquistado à duras penas foi e está sendo um grande fator de mobilização das mulheres. E por conta disso, era comum ouvir manifestações de pessoas acerca das conquistas sociais como o voto feminino, as ações afirmativas nas universidades, as políticas voltadas para as pessoas empobrecidas, e vários outros temas que unem os movimentos sociais. A ameaça contra a democracia, a volta de governos ditatoriais, a perseguição e violência contra pessoas negras, homossexuais e lésbicas, contra professoras e professores, artistas e intelectuais, a violência sobre possíveis opositores ao governo, formam o conjunto de motivos para aderir e apoiar a caminhada. Com isso, vê-se que ela tem uma pauta feminista embora não se encerre nela.
O feminismo presente neste ato é inegável, mas para além dele existe o combate às propostas não democráticas e aos riscos de retrocesso das conquistas sociais. Por conta dessa realidade ameaçadora, as mulheres e homens foram às ruas num protesto sem precedentes em Belém, de tal modo que se pode afirmar que se trata de fato ímpar, único, portanto, em nossa História.
Mesmo que se tente negar a sua relevância, trata-se de algo novo e que traz marcas indeléveis sobre nossas vidas. Para além das eleições presidenciais deste ano, o ato está atrelado a algo mais abrangente e que diz respeito às mulheres do Brasil, e de outros países. Contudo, eu me reporto apenas às minhas impressões deste dia, desta tarde, e desta noite inesquecível.
Viver esse momento junto à minha filha, amigos e amigas, colegas e pessoas desconhecidas foi um alento e uma esperança renovada. Estudar sobre o movimento feminista e sobre as relações sociais de gênero não é suficiente diante da possibilidade de inserção na luta pela igualdade de gênero. Combater, efetivamente e para além das urnas eleitorais, a proposta que se apresenta por um candidato com perfil de extrema direita, dá-nos alento e torna a vida menos triste e desesperançosa.
Amanhã será outro dia, mas este dia de primavera em Belém do Pará (embora ela não seja tão evidente em nossa região) ficará para sempre na memória de quem dele participou. Estou exausta, cansada fisicamente, e feliz com a possibilidade de ter chegado ao fim desta feliz caminhada.
Após um almoço regado com açaí e camarão, resta o repouso de quem está plenamente convicta de que as mulheres têm uma força “tremenda”. E mesmo diante das conjunturas, atuais e pretéritas, nas quais há o predomínio do Patriarcado, sabemos que a nossa força existe, que algo em nós está oculto e que nos faz sermos fortes, há algo que não nos vence efetivamente, posto que temos adormecida a potencialidade de sermos plenamente o que somos.
Quando viemos juntas às ruas e trazemos à tona essa força, não há o que nos segure. Nem a violência, seja ela física ou simbólica, nem as práticas misóginas apagam efetivamente nossas vontades.
Estou feliz com o que vivenciamos ontem, estou feliz porque não estivemos sós, estou feliz porque nossa pauta não é das mulheres ela é uma pauta de todos. Ser feminista é ser a favor da humanidade, embora algumas pessoas pensem ser uma reinvindicação de coisas restritas às mulheres e contra os homens.
Estou feliz e realizada com o que vivi e feliz com o porvir.
Avante!







[i] Assessora da ADIS/UFPA - Assessoria da Diversidade e Inclusão Social. Coordenadora do VISAGEM/ Grupo de Estudos sobre Antropologia Visual e da Imagem. Coordenadora do GEPI - Grupo de Estudos sobre Populações Indígenas. Pesquisadora do LAANF - Laboratório de Antropologia Arthur Napoleão Figueiredo.

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